domingo, 15 de setembro de 2013

AS FEIRAS DE TORRE DE DONA CHAMA

A Idade Média trouxe o advento das feiras, com as características semelhantes às que ainda hoje conhecemos.
As feiras eram, nessa altura, a expressão mais significativa do comércio interno português.

Abandonadas as ideias de auto-suficiência, as feiras passaram a regular um vasto leque de actividades, abrindo as portas a todos aqueles que intervinham na actividade comercial, desde quem produz a quem consome, passando por quem distribui.

No que à distribuição diz respeito, numa época em que as comunicações eram limitadas, os almocreves eram essenciais ao abastecimento de bens às vilas e cidade, funcionando ainda como elo de ligação intercomunitária.




A almocrevaria, ao longo da Idade Média, constituiu a “coluna vertebral” do comércio português.

Os almocreves trabalhavam durante todo o ano, pelo que provocavam uma circulação económica permanente.
Circulavam sozinhos, utilizando como meio de deslocação bestas, machos e mulas, tendo como sua maior limitação a quantidade reduzida de carga que podiam transportar e como privilégio principal o direito de porte de arma.

À época, uma das rotas de abastecimento mais importantes era a que levava almocreves a transportar peixe para o interior e, no sentido inverso, cereais.

Entre a formação do Reino de Portugal e o reinado de D. João III, o número de feiras era escasso. 
Eram criadas através de cartas de foral e eram uma prerrogativa régia.

A primeira feira a surgir regulamentada e individualizada foi a de Castelo de Mendo, em 1229, que se realizava três vezes por ano durante oito dias.

Com D Afonso III, surge um novo documento que regulamenta a sua existência: as cartas de feira. 
Estas conduziram ao aumento dos privilégios das feiras, tendo esta política sido continuada por D. Dinis, monarca responsável pela criação das primeiras feiras francas e pela concessão de diversos privilégios aos participantes nas feiras, o que proporcionou o seu desenvolvimento.

O reconhecimento régio formal da feira de Torre de Dona Chama poderá situar-se em 19-04-1335, por ser tal data referida na confirmação de 1456, de D. Afonso V (As Feiras no Portugal Medieval - Paulo Alexandre Morgado Cunha).

Por esta altura, sua periocidade seria mensal e realizada no dia 26, tendo isenções fiscais que se extendiam aos dias 25 e 27.

A descrição dos direitos de portagem, mencionada no foral de D. Manuel (1512), sugere que, nessa altura, Torre de Dona Chama era já um importante local de trocas.

Em qualquer caso, é certo que, desde finais do Séc. XVII, a feira de Torre de Dona Chama passou a ser a mais importante de Trás-os-Montes e uma das melhores do reino.

Disso nos dá conta Maria da Piedade Braga Santos, historiadora que estudou em particular as feiras de Torre de Dona Chama, na sua tese de mestrado, apresentada em 1988, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Faculdade Nova de Lisboa, intitulada “As Feiras de Torre de Dona Chama (1730-1830), Comércio Inter-Regional e Mercados Rurais”.

Forte componente deste estudo foi a análise dos rendimentos dos portos secos transmontanos (situados na fronteira terrestre, por oposição aos portos molhados que, naturalmente, se situavam junto ao mar), mormente o de Vinhais, a que a aduana de Torre de Dona Chama se encontrava adstrita.

Todavia, a aduana de Torre de Dona Chama, embora não permanente e existente por causa da sua feira mensal, tinha um volume de receita bastante mais elevado que outros portos secos de funcionamento diário, justificando vir mencionada à parte nos livros do erário – vd. http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=4181687.

O primeiro livro de receita data de 1697, referenciando a feira de Torre de Dona Chama como uma feira de gado.

As Memórias Paroquiais (colecção de respostas dos párocos locais a um questionário, encomendado pelo Marquês de Pombal, através do qual se pretendia obter informações sobre as paróquias, abrangendo a totalidade do território continental português) referem que a Torre de Dona Chama, por esta altura, tinha feira “aos cinco de cada mês em todo o anno”. 

Mais esclarecem que “Nam dura mais de hum dia, somente no mês de Novembro dura dous dias. Hé forra e franca das mais antíguas e milhores da Provincia, de cada mês e foi das feiras de mês das milhores do Reino”. 

Por fim, informam que “Nam se paga siza das compras e vendas de gados e mais mercancias, nem pedidos, somente os contratantes que pousam nas ruas della pagam por cada carga huns reais ao senhor da villa”.


Porém, relativamente à Feira dos Santos, em 1752, o Juiz Ordinário, oficiais e demais povo da Vila, pedem ao rei D. José autorização para transformar a feira de Novembro em feira de ano, por força da afluência de pessoas que a ela acorriam, o que a “tornava tão famigerada que a ella concorria toda aquella Província, mais a maior parte da Beira e Minho”.

Todavia, é referido na petição dirigida ao rei que, “como dura apenas um dia é mais prejudicial do que útil aos que a ella vem comprar ou vender, porque no limitado tempo de um dia de Inverno nem os mercadores o tinham para desemfardar nem para enfardar as suas fazendas, nem os compradores para enformar-se bem das coalidades dellas, e seria útil que asi fizesse de três dias, a saber, nos dias 4, 5 e 6 do dito mêz de Novembro”.

Não se deixa de estranhar a discrepância que existe entre a Memória de Torre de Dona Chama e esta petição dirigida ao rei, quanto ao número de dias que a Feira dos Santos tinha por esta altura (um dia, segundo a petição, dois dias segundo as Memórias Paroquiais), admitindo-se, como hipótese, que a perspectiva da autorização de fazer feira por três dias, entusiasmasse os da Torre a fazer feira por dois dias, ainda que sem autorização expressa.

Em qualquer caso, D. José aceitou o pedido de alargamento para três dias da Feira dos Santos, que, assim, se tornou uma verdadeira feira anual.

 


Por esta altura, a feira de Torre de Dona Chama era considerada a melhor feira de Trás-os-Montes (MENDES, J. A. Amado – Trás-os-Montes no final do Século XVIII, Segundo um manuscrito de 1796 de Columbano Ribeiro de Castro, Coimbra: Instituto de Investigação Científica, 1981, p. 559) e uma das melhores feiras francas do país (Branco, I. A. F. (2009). Mirandela Setecentista. Tese de Doutoramento em História).

Mas a feira não se circunscreve à economia interna, sendo bastante frequentada pelos almocreves galegos, os quais introduzem produtos mais elaborados, como arreios para as bestas de transporte de trabalho e utensílios caseiros, como o pote e o talher de ferro, levando de volta, entre outros produtos, toalhas mirandesas e amêndoa doce algarvia.

Por sua vez, os almocreves de Leão (referidos como castelhanos pelos oficiais da alfândega) vendem varas de estopa e estamenha, levando sal, vinho e azeite.

Ainda sobre os produtos transaccionados nas feiras da Torre, Maria da Piedade Braga Santos (ob. cit.) refere que “Durante a primeira fase de evolução da feira os produtos dominantes eram o ferro, trazido pelos galegos, e o sal que levavam como retorno. A partir de finais da década de sessenta, o âmbito comercial da feira alarga-se: vinho, azeite e gado afluem quantidades crescentes”.

Segundo a mesma historiadora, as feiras de Inverno eram as mais concorridas. “Destacam-se Novembro e Março: antes de cada sementeira o camponês vem à feira abastecer-se de artigos indispensáveis ou, se é também almocreve aproveita não ter que fazer na sua leira de terra, para ganhar moedas suficientes ao pagamento das rendas e dos impostos”.

Em finais do Séc. XVIII, “a Tôrre de D. Chama seria já um centro importante de comércio de bois, tal qual a feira dos Chãos, no têrmo de Bragança (Descripção da Província de Trás os Montes, na Illust.Trasm., 1908, pág. 82).

Porém, após um século de crescimento, no início do Séc. XIX, a feira de Torre de Dona Chama, com a crise e a depressão que se instalam no território português, sobretudo no interior, inverte a fase de progressão, sendo abandonada pelos raianos e perdendo importância, anunciando a perda da sede administrativa da Vila.

Contudo, apesar de ter adormecido, tal como a própria Vila, que perdeu o estatuto de sede de concelho em 1855, não deixou de manter importância regional, mormente no que ao gado diz respeito.

Disso nos dá conta Vergílio Taborda, na sua tese de doutoramento em Ciências Agrárias (“Alto Trás-os-Montes, Estudo Geográfico”, publicada pela Imprensa da Universidade de Coimbra, em versão fac-similada da edição de 1932), já no Séc. XX, ao referir que “Ao lado das grandes feiras de bois dos planaltos do norte – o Naso, na terra de Miranda, Bragança, Chãos, Chacim – a Tôrre de D. Chama, na fronteira da terra quente, reüne, em certas ocasiões no seu imenso toural mais de um milhar de cabeças” e ainda sobre o gado ovino, “Na bacia média do Tua se confina a melhor criação; as feiras de Mirandela e Tôrre de D. Chama reünem milhares de cabeças e são os maiores centros de comércio de gado lanar de tôda a província”.




Exemplo de alguma importância que as feiras da Torre mantinham no comércio regional, nos finais Séc. XIX, dá-nos a edição de 6.Março.1838, do Jornal “O Ecco”, na “Parte Official”, com a notícia da Portaria (Reino), de 1.Março.1938, dirigida ao Administrador-Geral de Bragança, em resposta ao seu ofício “em que parte de ter um bando se salteadores, que infestão o Concelho de Vinhaes, e immediações, roubado algumas pessoas na ida, e vinda da Feira da Torre de D. Chama; ordenando-lhe, que, requisitando ás authoridades militares a força, que julgar necessária, faça na occasião da feira rondar a estrada, de modo que se possa livremente transitar”.

Assim, a fama das feiras da Torre de Dona Chama ressurge no início do Séc. XX.

Disso faz eco a imprensa local (sobre a imprensa de Torre de Dona Chama, ver o artigo deste blog “A Imprensa Torreense no Alvor Republicano”), mormente o Jornal “A Torre D. Chama”, na sua edição nº 8, de 30.06.1911, ao reportar o desejo da Vila e das povoações que a rodeiam, que as Feiras dos Santos (Novembro) e dos Reis (Janeiro), “as mais importantes de todo o anno”, tivessem mais do que um dia (5 e 6), sugerindo à Junta da Paróquia que intercedesse por tal melhoramento junto do Governador Civil.

O assunto é retomado, em 1.02.1913, na edição nº 9 do Jornal (a edição do Jornal teve um longo interregno), perante a inércia da Comissão Paroquial, acrescentando-se ainda o desejo de que as Feiras se realizassem também ao Domingo (quando o dia 5 seja Domingo).




Reedita-se, assim, o desejo das gentes da Torre de Dona Chama de que as suas feiras principais fossem alargadas no número de dias.
Surge também a discussão, que ainda hoje se mantém, sobre a realização da feira ao Domingo quando o dia de feira cai num Domingo.

Também em pleno Séc. XX, a feira mensal passou-se a fazer duas vezes por mês (a 5 e a 17), apesar do comércio local e regional se modificar, surgindo o conceito de mercado, mais restrito aos compradores locais, a que Torre de Dona Chama não fugiu.




No plano sociológico, vale a pena aqui falar da importância que as feiras tinham nesta altura.

Espaços de socialização, onde a festa, a animação e até o excesso tinham o seu lugar, as feiras eram sobretudo um espaço de representação social, onde se exibiam os melhores fatos bem como os melhores animais, ainda que não estivessem à venda.

Não custa imaginar uma qualquer taberna da época, como a do Arnaldinho, dentro da qual, após uns quantos quartilhos de vinho, se discutiam os assuntos da terra, discussão levada tanto a peito que até se chegava, por vezes, a vias de facto, dando uso aos indispensáveis cajados.

Actualmente, a feira de Torre de Dona Chama faz-se em espaço próprio, um tanto longe das principais ruas da Vila.




Algumas das questões que se levantaram, como vimos, ao longo da sua história, permanecem hoje em discussão para as feiras da Torre: devem ou não ser efectuadas ao Domingo; devem continuar a fazer-se, num recinto próprio, com condições mais apropriadas para os feirantes, mas desgarrado dos centros de comércio local e da restauração; as feiras dos Santos e dos Reis devem, ou não, ter mais que um dia.


São questões às quais os decisores políticos não podem fugir, ponderando, como é mister da coisa pública, qual as melhores soluções, tendo em vista, não os interesses particulares, mas antes o interesse público.