sábado, 6 de outubro de 2012

Ponte da Pedra


Ponte da Pedra na rede viária actual:



Quem circula na estrada nacional nº 206, entre Bouça e Torre de Dona Chama, a cerca de 3 Km a Oeste desta Vila, quando atravessa o rio Tuela, não fica indiferente à existência de uma ponte, cuja ancestralidade se revela no granito dos seus arcos ou na reduzida largura do seu tabuleiro.
Tabuleiro actual da Ponte da Pedra - Foto do Autor



Todavia, o viajante menos atento está longe de imaginar que está a observar uma ponte milenar, de origem romana e classificada como monumento nacional.


Ponte da Pedra - Foto do autor

Nada anuncia a existência e importância de tal obra de arte.

Nenhuma placa informa ou assinala que estamos a observar uma das mais importantes obras de arquitectura civil que o império romano deixou no território nacional.

Isto apesar do artigo 33º do DL 309/2009, de 23.10, que prevê a protecção do património cultural imóvel, estabelecer que “Os bens imóveis classificados são identificados através de placa informativa e sinalética adequadas para o efeito”.



Tal omissão é pois, não só desprestigiante para os poderes locais (leia-se Junta de Freguesia e Câmara Municipal, mas também entidades culturais locais) e nacionais (IGESPAR), mas também uma clara violação de uma lei do Estado Português.

E esta indiferença perante tão importante património é ainda mais preocupante, do ponto de vista do desenvolvimento da Torre de Dona Chama, se considerarmos que a Ponte da Pedra é um dos dois monumentos nacionais existentes no concelho de Mirandela (o outro é a Ponte Velha, em Mirandela) e, pela sua ancestralidade, o mais importante.


Romanidade da ponte da pedra:



A Ponte da Pedra foi classificada como monumento nacional pelo Decreto n.º 28/82, DR, I Série, n.º 47, de 26-02-1982.

Trata-se, portanto, de uma classificação relativamente recente.

Tal facto resulta da circunstância de, durante muitos anos, se duvidar, ou ignorar, que a ponte tivesse origem romana.

Embora já o Abade de Baçal se referisse à romanidade da Ponte da Pedra, deveu-se provavelmente a António Maria Mourinho a classificação da Ponte como monumento nacional de origem romana.
Em 1978, no seu artigo “Ponte romana no rio Tuela e síntese das vias e pontes romanas no nordeste transmontano”, in Trabalhos de Antropologia e Etnologia, Porto, escrevia António Maria Mourinho:

No ano de 1977, regressava eu pela estrada de Valpaços a Bragança, pela Torre de Dona Chama e notei, a três quilómetros desta antiga vila, ao enfrentar o rio Tuela que as aduelas da ponte que o atravessa, sob a mesma via, eram semelhantes aos da Ponte de Chaves e da Ponte de Salamanca sobre o rio Tormes. (…)   
         
Ponte de Salamanca - Pormenor 




Ponte da Pedra – Pormenor – Foto do Autor


Desço ao rio e vejo no extremos dos arcos que são seis, dois grandes viadutos quadrados, para o escoamento das águas nas grandes enchentes e verifico no interior do primeiro arco e logo em todos, as fissuras longitudinais do «forfex», no centro dos silhares, em toda a dimensão inferior dos arcos. Na extremidade poente, abrem-se outros quatro viadutos, como os do lado nascente. (…)
 Viadutos - Foto do autor


Nota-se perfeitamente que foi aproveitada toda a estrutura arquitectural central dos arcos e suas ligaduras muito resistentes (…). (…)

A PONTE DA PEDRA da Torre de Dona Chama (…) é uma ponte romana, bem conservada na sua origem, (…) a qual embora e pertencendo e servindo actualmente à Junta Autónoma de Estradas, como rodovia de trânsito actualizado, deve a Direcção Geral do Património Nacional diligenciar que seja classificada de MONUMENTO NACIONAL ROMANO, e inscrevê-la no respectivo catálogo e procurar junto da mesma Junta Autónoma de Estradas a sua preservação e conservação, sobretudo na parte original romana”.
E, efectivamente, poucos anos depois, a Ponte da Pedra era classificada como monumento nacional, como é aqui documentado num ofício intergovernamental da época.

 Doc. SIPA

Actualmente, é seguro que a Ponte da Pedra, tendo sofrido alterações, ao longo dos tempos, é uma ponte romana, que assim é descrita na respectiva ficha do IGESPAR:
Terá sido inicialmente uma construção romana que sofreu posteriores alterações que no entanto não lhe retiraram o nem o seu carácter nem a sua qualidade arquitectónica.
Esta monumental ponte em alvenaria de cantaria de granito é constituída por seis arcos de volta perfeita, com um raio de cerca de 4,4m, reforçados, junto aos pegões, por talhamares que atingem a cota do tabuleiro e que acabam por funcionar também como contrafortes da estrutura. As aduelas dos arcos encontram-se colocadas em cunha sendo bem visíveis as marcas de forfex (perfurações que permitiam o encaixe das extremidades de grandes tesouras metálicas, integradas em sistemas de elevação que permitiam transportar e elevar os blocos).
Marcas de "forfex" - Foto do autor

O seu tabuleiro rectilíneo e horizontal, protegido lateralmente por guardas, tem cerca de 100m de comprimento por uma largura de 6,3m e encontra-se a uma altura de cerca de 6,5m acima do leito do rio.
Eventualmente, esta ponte, junto da qual se encontrou um marco miliário anepígrafo, integraria a via romana que das actuais Léon e Astorga se dirigia a Zamora e Salamanca.
Durante a Idade Média passaria por aqui um importante eixo viário regional que de Guimarães se dirigia a Bragança. A leste encontra-se ainda o troço de um caminho empedrado com cerca de 800m de comprimento e que se bifurcava a cerca de 300m da ponte” - o entrelinhado é nosso.


Caminho junto à Ponte da Pedra - Possível traçado da Via XVII - Foto do Autor

Manuel Duran Fuentes, especialista espanhol sobre pontes romanas, classificou as pontes da península ibérica, segundo a tipologia, colocando, a Ponte da Pedra, tal como a de Trajano, em Chaves e a já falada Ponte de Salamanca, no modelo I, caracterizado por ser uma ponte baixa, de plataforma horizontal, com todos os arcos iguais ou parecidos, usada para atravessar rios que correm por vales amplos.





Ponte da Pedra - Arcos Centrais - Foto SIPA



A Ponte da Pedra na rede viária romana:

As vias de comunicação foram sempre, ao longo do tempo, da maior importância e utilidade para o progresso da humanidade.
As vias romanas, em particular, utilizadas por Roma como instrumento que permitiu estender a sua cultura a todos os territórios conquistados, tiveram um papel fundamental no que hoje se designa como a civilização ocidental.
É difícil de imaginar o que seria o desenvolvimento cultural e material dos povos e lugares, por onde os romanos passaram, se não tivessem existido as vias romanas.
Quando, dois mil anos mais tarde, se continua a ouvir na boca de toda a gente a expressão “todos os caminhos conduzem a Roma”, tal é apenas o reflexo de que as vias romanas foram o cordão umbilical do Império.
O documento mais interessante que nos chegou até nós sobre as estradas romanas consiste numa relação delas, com indicação das mansiones percorridas e as distâncias entre elas: trata-se de um itinerário escrito, cuja origem, autoria e datação permanecem controvertidas, chamado Itinerarium Provinciarium Antonini Augusti.
Vias Romanas da Hispania - Fonte Wikipedia
De entre as vias que percorriam o actual espaço geográfico nacional, a chamada Via XVII, que ligava Bracara Augusta (actual Braga) a Asturica (actual Astorga, Comunidade Autónoma de Castela Leão), é a mais antiga do noroeste peninsular, como é atestado por vários miliários atribuídos a Augusto, datados entre os anos 5 e 2 a.C..
O traçado provável de tal via foi, ao longo dos tempos, objecto de estudos sectoriais, procurando identificar as mansiones intercalares e os percursos entre as mesmas.
De todas as mansiones intercalares, aquela sobre que já não recaem quaisquer incertezas, é Ad Aquas, depois Aqua Flaviae, a actual Chaves, onde se situa a conhecida Ponte de Trajano, construída entre finais do século I e inícios do século II d.C., durante o processo de romanização da região, coincidindo com a vigência do imperador Marco Ulpio Trajano.
Ponte de Trajano - Chaves
Apesar de discutir a existência de possíveis variantes, Colmenero, descreve assim a via romana, na zona da Ponte da Pedra:
Desde Val de Gouvinhas, a calzada avanzaba case en liña recta cara á ponte romana da Torre de Dona Chama, desde onde, polo norte e sen toca-la poboación deste nome, ascendería, pola suave ladeira alí existente, camiño da aldea de Lamalonga, onde foron atopados outros dous miliarios (nos. 115, 116), segundo se verá.
Avanzaría seguidamente por Agrochao, Penhas Juntas e Edrosa para, unha vez superada esa poboación, torcer á esquerda e encaixarse maxistralmente pola ladeira oriental da depresión que baixa ata Nunes, aldea que tocaría, polo leste, no seu percorrido, e avanzar despois, ou polo trazado da moderna estrada cara a Vinhais”.
Da existência de outros marcos miliários, encontrados perto de Torre de Dona Chama, mormente na zona de Vila Nova da Rainha, se dá conta em recentes estudos realizados nos concelhos de Macedo de Cavaleiros e Vinhais.
Possível marco miliário - Vila Nova da Raínha - Foto "Terras Quentes"
O aparecimento de marcos miliários é tido como decisivo sobre a existência, nas suas imediações das vias romanas.
Os municípios de Macedo de Cavaleiros e de Vinhais têm apoiado o estudo das chamadas Vias Augustas, na qual se insere a Via XVII, da qual a Ponte da Pedra era parte integrante.
Estranha-se a inércia do município de Mirandela, sobretudo se considerarmos que a Ponte da Pedra é, talvez, depois da Ponte de Trajano, em Chaves, o vestígio mais importante da Via XVII de Antonino.
Ponte da Pedra – Filipe III:
O facto da Ponte da Pedra ter origem romana e conservar intactas muitas das suas características, designadamente os seus arcos, não invalida que tenha sido, como outras (assim conteceu com a de Trajano), sujeita a reparações e modificações, ao longo dos tempos.
 
Das documentadas, destaca-se a ocorrida, durante a dinastia filipina, mais propriamente, próximo de 1635, no reinado de Filipe III (IV de Espanha).

A ela se refere SOUSA VITERBO (Dicionário Histórico e Documental dos Arquitectos, Engenheiros e Construtores Portugueses, Vol. I, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, s/d, pp. 491):
Gonçalo de Aguiar arrematou tambem por 2:500 cruzados a obra da ponte do rio da villa de D. Chama. Filipe III, por provisão de 4 de janeiro de 1635, mandou lançar finta da dita quantia para esta construcção. (Filipe III, Doações, liv. 40, fl. 17).
Filipe III, Doações, liv. 40, Fl. 17 - Digitalização ANTT



Consultando a fonte primária citada, verifica-se que a razão da preocupação do monarca residia no facto da Ponte da Pedra, que se encontrava num estado degradado, servir de passagem para o Reino da Galiza.

Por isso justificava que lançasse a dita finta (leia-se imposto) sobre os moradores dos lugares, não só da comarca de Moncorvo (à qual a Torre de Dona Chama estava ligada administrativamente), mas também das comarcas das cidades da Guarda, Viseu, Lamego, Porto, Miranda e “vila de Guimarães”.
  
Filipe III, Doações, liv. 40, Fl. 18 - Digitalização ANTT
A amplitude da finta demonstra, sem sombra de dúvida, a importância regional que a Ponte da Pedra mantinha por esta altura.
Importância que também se extendia à própria Vila, designadamente, por força da preponderância que as suas feiras tinham no comércio regional e mesmo nacional.







Ponte da Pedra – Perplexidades actuais:


Já após a sua classificação como monumento nacional, a Ponte da Pedra foi alvo de algumas reparações no ano de 1995, levadas a cabo pela Junta Autónoma de Estradas.

Segundo o site do IGESPAR, que não tem disponibilizado o respectivo relatório, tratou-se de trabalhos de consolidação e beneficiação.

Ao que julgamos saber, a intervenção, que durou cerca de um ano, debruçou-se, sobretudo sobre a consolidação das fundações que apresentavam problemas resultantes do curso do Tuela.
Tal preocupação de conservação da Ponte da Pedra tem sofrido, contudo, alguns reveses, designadamente, por força da sua utilização na rede viária – E.N. 236.
Em data que desconhecemos, a Ponte da Pedra foi local de ocorrência de dois alegados acidentes de viação que lhe derrubaram parte de ambas as guardas.


Uma das guardas derrubadas – Foto SIPA



Tais guardas foram alvo de reparação.

Todavia, apesar de, é certo, tais guardas não fazerem parte do núcleo da Ponte da Pedra assumidamente romano, não pode deixar de se questionar a forma como tal reparação foi feita, não havendo qualquer cuidado de enquadrar o granito novo, na vetusta estrutura existente.


Guarda Oeste – Foto do Autor


O mesmo se diga, quanto à introdução de materiais, como o cimento, desadequados para uma obra de arte tão antiga.


Guarda Este – Foto do autor


Porventura com alguma má consciência (nós próprios alertamos para o desleixo a que estava votada a Ponte da Pedra), o IGESPAR, já em 2007, realizou trabalhos arqueológicos na área da Ponte da Pedra.
Segundo o site respectivo, tais trabalhos consistiram na “Desmatação e limpeza sumária da estrutura associada a uma provável mutatio. Desmatação e limpeza sumária do muro Sul que ladeia o caminho tendo em conta que o muro Norte se encontra muito destruído e apresentava aparentemente uma construção recente. Registo fotográfico do muro nos locais onde se pôde constatar a existência de elementos pétreos de origem romana e/ou medieval. Execução de sondagens de 20 em 20 metros. Continuação das sondagens onde fossem detectados prováveis vestígios da via romana.
A mutatio, na lógica da rede viária romana, era um estabelecimento de mudança de animais de tiro, estabelecida normalmente cada quatro ou cinco milhas, que compreendia um estábulo e uma rústica moradia destinada aos cuidadores.
Pena que o relatório dos trabalhos não esteja livremente disponível.
Em qualquer caso, “Os trabalhos de escavação indicaram a presença de um caminho antigo que face às suas características poderá corresponder a um caminho romano. No entanto, a inexistência de materiais dificulta uma atribuição cronológica mais precisa”.
Louvamos a aparente nova postura que o IGESPAR parece ter em relação à Ponte da Pedra.
Foto SIPA
Ponte da Pedra – Que Futuro?
A Ponte da Pedra da Torre de Dona Chama é um monumento nacional, de origem romana, que esteve integrado na rede viária romana, na chamada Via XVII de Antonino.
Actualmente ao serviço da rede viária nacional, servindo a E.N. 236 para transpor o Rio Tuela, permanece incógnita e desprezada pelos poderes locais e nacionais.
Desprezada pelos poderes locais que não têm sabido promover a sua importância como lugar histórico de interesse turístico, capaz, integrado num percurso mais vasto que englobe o demais património imóvel e móvel, de promover de forma sustentada a Torre de Dona Chama.
Desprezada ainda pelos poderes nacionais, que não a respeitam como monumento nacional protegido pelas leis do Estado, permitindo que seja praticamente desconhecida, não se dando sequer ao trabalho de a sinalizar e assinalar como Monumento Nacional.
 
Foto SistMir
Com a dignidade de tal classificação seria exigível que fosse, tal como foram outros monumentos nacionais, dispensada do esforço de servir a rede viária, promovendo-a e dignificando-a como imóvel milenar, exemplo digno da romanização em Portugal.
Como os ventos económico-financeiros não estão de feição para tal pretensão, impõe-se, pelo menos, a implantação de uma zona especial de protecção, que impeça atentados à sua estrutura e promova a sua preservação.
Como o procedimento administrativo de implantação da zona especial de protecção se pode iniciar a requerimento de qualquer interessado, ficava bem à Junta de Freguesia de Torre de Dona Chama dar o pontapé de saída nesse sentido.
Contudo, estaremos atentos e, caso nada seja feito, ponderaremos assumir tal responsabilidade.




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